domingo, 19 de abril de 2009

OS DOIS

Os dois se gostaram, como poucas pessoas chegaram a se gostar, naquela cidade.
De manhã, ao acordar, um pensava no outro ( mas o motivo eram as aulas, a cola dos pontos mais difíceis de Matemática e Álgebra, que preparavam juntos em papéizinhos quase invisíveis, para as provas mensais ).
Ao meio-dia se encontravam ( as casa em que moravam ficava justo no caminho do Ginásio Carangolense, onde estudavam na mesma classe ).
Depois das aulas, trocavam de roupa num terreno cheio de mato ( mas era só para botar os calções, antes das peladas, jogadas e discutidas a dois ).
À noite, quando passava filme de "cawbói", juntavam os trocados e iam sentar nas primeiras filas do Cine-Teatro Brasil ( torcer pelo mocinho, comer pipoca, ver quem fazia mais barulho estourando os sacos de papel ).
Um sábado, foram juntos, pela primeira vez, à casa da Doninha. Primeiro um, depois o outro, com a mesma mulher.
"Tempo que der ao tempo, ao tempo dará"( era assim um pedaço da letra da modinha que cantavam em dueto, nas noites de lua, embaixo das janelas das namoradas ).
Namoraram, viraram homens, noivaram e casaram; juntos, no mesmo dia, com duas irmãs.
Então, foi a festa do casamento duplo, a cervejada, e foi a vontade de se desapertar.
Se tocaram, sem querer, ao desbeber juntos, no sanitário estreito, do fundo do quintal.
Cada um pensou que o outro não sabia de nada. Um não viu o que o outro viu.
De volta à festa, no escuro, não conversaram nada, meio tropeçantes, mãos um pouco trêmulas ( mas foi por efeito da bebida ).
Aconteceu como devia ser. As mulheres irmãs, fazendas próximas, as duas casa da cidade na mesma rua. Foram padrinhos de batismo dos primeiros filhos um do outro.
Juntos trabalharam, plantaram e criaram, botaram comércio e prosperaram.
Só uma coisa: depois de casados nunca mais bateram olho com olho. Até esqueceram da cor do olho um do outro.
Os dois se gostaram, como poucas pessoas chegaram a se gostar naquela cidade.

( Esse conto foi escrito na carceragem do Ponto Zero ( 16 BPM - RJ ), onde o autor, ex- editor do jornal "Lampião", encontrava-se preso há seis meses, sob regime da Ditadura no Brasil, sem julgamento ou culpa formada )

FOLHETIM - DOMINGO, 10 DE JANEIRO DE 1982

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